SOMOS COMO A BRASA...
Era sábado. O segundo sábado do mês para ser mais exato. Era dia de gira no terreiro que ele frequentava há algum tempo. Terreiro onde ele descobriu e estava desenvolvendo sua mediunidade, onde conheceu coisas novas, fez novos amigos, mas também encontrou pessoas com quem não tinha tanta afinidade e onde teve de se comprometer com novas “obrigações”.
Olhou o relógio. Naquela hora, lá no terreiro, os trabalhos estavam se iniciando. Tudo pronto para gira começar. As preces iniciais, a saudação e logo os tambores tocariam os primeiros pontos. Esse pensamento apertou seu coração e ele sentiu um certo remorso por não estar lá.
Aquela já era a terceira vez seguida que ele faltava a um dos encontros da casa. Encontros aos quais os médiuns eram orientados a comparecer sempre que possível. E essa cobrança da presença era uma das “obrigações” que agora ele ponderava.
Além da presença “forçada”, tinha ainda toda a rigidez com horários, com uniforme, com ritual. Era tanta coisa, tanto “mimimi”!... Gostava do terreiro, dos trabalhos, do som do tambor. Mas essas “bobeirinhas”, como ele chamava, lhe tiravam o gosto. A seu ver, acabam por afastar as pessoas!
Esses pensamentos povoavam sua mente naquele instante e lhe davam um certo conforto por mais aquela falta, quase como que uma justificativa para si próprio do porque não ir. Naquele sábado, estava cansado. No outro encontro, não pôde ir por causa do trabalho. E naquele anterior, o do domingo pela manhã, nem se lembra o porquê, mas também não fora... E era como se uma voz lhe falasse “ah, mas você tinha seus motivos!”. E achava injusto o fato de não poder colocar o uniforme no dia em que voltasse - pela regra da casa, quem faltasse a três encontros seguidos, teria de assistir ao próximo encontro que comparecesse na assistência, não poderia colocar o uniforme. Acha aquele “castigo” também desnecessário. E era como se alguém lhe dissesse “Ah, é! Não sei pra que essa bobeira!”...
E esse foi o último pensamento sobre o terreiro antes de ter sua atenção desviada pela TV. Um filme que ele já vira antes estava começando... Mas o filme repetido lhe deu sono. E ali ele dormiu. E sonhou.
No sonho, era noite e estava frio. Ele se via num lugar onde a única luz que havia era a que vinha de uma fogueira que queimava alguns metros a sua frente, em frente a uma casa simples, feita de pau a pique. Nela, uma porta e uma janela abertas. Mas, apesar da lua que iluminava todo o lugar, não conseguia ver nada lá dentro.
Ficou ali por alguns instantes. Ouvia o barulho do fogo que queimava a lenha, os bichos da noite, água correndo ao longe em algum lugar. Apesar do frio e da solidão, o cenário era calmo e bonito.
- Se achegue, fio... De repente alguém falou na escuridão. Aquela voz, em meio àquele ambiente, deveria ter lhe assustado, mas era tão familiar e carinhosa que apenas lhe chamou a tenção para o que ele ainda não havia percebido: sentado próximo à fogueira, estava um homem velho, negro, com uma barba branca, com as mãos apoiadas em uma bengala e fumando um cachimbo.
- Sua benção, vô... Falou o rapaz meio sem graça, se sentando em uma pedra próxima à fogueira.
- Que Zâmbi, o abençoe, fio... Velho sentiu sua falta na gira...
O rapaz baixou os olhos e fixou-os no fogo que ardia na fogueira. Depois de algum tempo, ainda em meio ao silêncio, o velho se levantou e lentamente foi até a fogueira e cuidadosamente, separou um dos pedaços de madeira que queimavam ali. Escolheu o mais incandescente de todos e, com a bengala, o empurrou para fora da fogueira. Olhou para o rapaz e voltou então a se sentar em seu lugar, calado.
O rapaz prestou atenção aos movimentos do velho quieto...
Aos poucos, a chama do pedaço que o velho havia separado diminuiu, até que ficou só brasa e essa, em pouco tempo, também se apagou. O que antes era uma festa de calor e luz, agora não passava de um frio e morto pedaço de carvão recoberto de uma espessa camada de cinzas.
Ao cabo do que pareceram horas, nas quais nada foi dito, o canto de um galo cortou o silêncio. E, no mesmo instante, uma estrela riscou o céu. O velho se levantou, sorriu para a lua, pitou mais uma vez seu cachimbo e disse:
- Velho já vai s’imbora...
Ainda calado, o rapaz viu o velho empurrar com a bengala o toco que ele havia tirado da fogueira para perto das outras brasas. E o pedaço de madeira, agora frio e aparentemente inútil, quase que imediatamente, tornou a incandescer, alimentado pelo calor das brasas ardentes a sua volta. E ainda em silêncio, o velho se dirigiu para a casa com seu passo vagaroso. Quando ele alcançou a porta, o rapaz, com o rosto banhado em lágrimas, disse:
- Vô, obrigado por ter vindo... E por esse ensinamento... Nos próximos encontros, estarei no terreiro. Muito obrigado!”
Numa casa de Umbanda, o corpo mediúnico forma a chama que mantém a casa acesa, pulsando. Todos alimentamos e somos alimentados por essa chama, e fazemos parte dela. É o que se denomina a "egrégora" da casa. Quando nos afastamos do grupo, nos afastamos dessa egrégora e de sua influência direta. Tendemos assim a perder o brilho e o calor e nos tornamos mais vulneráveis aos ataques dos inimigos de nosso progresso espiritual. A união da Casa mantém acesa a chama de cada um e faz com que a proximidade entre todos crie um calor realmente forte, eficaz e duradouro.
Somos como a brasa!
(Adaptado de um conto disponível na internet)