
Cantinho de
Cosme e Damião
O QUE SANTO ANTÔNIO TEM A VER COM EXU?

O sincretismo religioso pode ser entendido - de maneira bem simplista - como sendo a “combinação” de doutrinas religiosas diferentes e a reinterpretação, a apropriação e o uso de elementos de uma religião por uma outra.
A associação entre santos católicos e Orixás nas religiões de matriz africana é um dos exemplos mais corriqueiros que temos desse fenômeno tão complexo. Mas, se observarmos bem, podemos identificar outros sincretismos como, por exemplo, a comemoração do Natal, como o nascimento de Jesus, na data de 25 de dezembro; ou ainda, a presença de um coelho que dá ovos na Páscoa!
Mas voltando ao que nos interessa aqui, o como e o porquê um Orixá veio a ser relacionado com um determinado santo católico é algo bastante estudado, mas ainda não totalmente explicado. Sabe-se que a associação, o sincretismo, deu-se entre outros fatores, pela aproximação de “características em comum” – atributos físicos, representações iconográficas, histórias/ lendas – existentes entre os santos e os Orixás.
E esse processo associativo ocorreu ao mesmo tempo em vários lugares. Por isso, por vezes, o mesmo Orixá pode ser representado por mais de um santo a depender do lugar. Em Cuba, a imagem de Santa Bárbara ficou associada a Xangô, enquanto a de São Pedro, a Ogum. Mas não é preciso sair do Brasil para encontrarmos diferenças como essas: na Bahia, a imagem de São Jorge foi associada ao Orixá Oxoce e, no Rio, a Ogum; e enquanto os baianos sincretizam Ogum com Santo Antônio, o povo de santo carioca fez de Santo Antônio a representação do Orixá Exu.
Talvez, o Orixá Exu tenha sido associado à imagem do frade franciscano que carrega o menino Jesus em seus braços pelo simples fato de ter sido um dos santos mais populares no Brasil colonial e ter em suas festas as fogueiras – o fogo é também associado a Exu! Ou talvez, porque, assim como Exu, Santo Antônio era evocado para se achar as coisas perdidas. Ou porque o santo era tido por casamenteiro e bom de lábia, assim como Exu, Orixá da comunicação, que também ajuda a arrumar casamento e fala a e com todos.
Santo Antônio era tão popular no passado que era evocado pelos senhores de engenho e feitores até para ajudá-los a recapturar os escravizados fugidos (afinal, pela crença popular, ele era o santo que ajudava a encontrar as “coisas” perdidas!). O que, talvez também tenha ajudado no processo de sincretismo, já que Exu, na crença iorubá é um Orixá “dúbio”, o executor das Leis, aquele que faz o que precisa ser feito e, por isso, era visto como capaz de atos de bondade e de atos nem tão nobres assim.
Seja como for, para os negros escravizado do Rio de Janeiro dos primórdios da nossa história, Santo Antônio foi sincretizado com Exu e a imagem do Santo passou a representar o Orixá das Encruzilhadas.
Só que, nas encruzilhadas da História, Exu já havia sido “confundido” – e sincretizado – antes também pelos brancos católicos que invadiram África, com um outro ser: o próprio diabo cristão.
Assim, Exu se transformou em um verdadeiro tabu para a sociedade de então, que era incapaz de ver além das aparências e de aceitar formas distintas de interpretação do mundo além daquelas que usavam as lentes judaico-cristãs. Assim, naquele momento, naquele estágio social, cultuar Exu era cultuar o próprio diabo.
Acontece que o diabo, por sua vez, também já tinha ganhado seus atributos a partir de uma outra reinterpretação feita pelos mesmos cristãos do passado em relação a outras divindades pagãs, ou seja, ele já havia sido sincretizado antes. E do sincretismo ocorrido com o deus grego Pã, por exemplo, que era metade homem, metade bode, o diabo acabou por “herdar” rabo, cascos e chifres. E ainda, do sincretismo feito com Poisedon, o deus grego dos mares, o diabo ganhou o tridente que ele carrega em várias representações. Foi assim, com base nessas tantas misturas, nas quais o diabo já tinha rabo, cascos, chifres e um tridente na mão, que se fez a associação de Exu com o diabo.
Paralelamente a tudo isso, como forma de resistência e reação, aqueles que conheciam Exu para além dos opositores – com boas e nem tão boas intenções assim! – se valeram dessa má fama e do medo para “afrontar”, assustar e se impor naquela sociedade, o que, por sua vez, reforçou as crenças que fizeram com que Exu se tornasse ainda mais um tabu. E o que talvez tenha influenciado no fato de a maioria das Casas de Umbanda não ter recebido Exu, enquanto Orixá, como parte do panteão que herdou do Candomblé.
Entretanto, se Exu não entrou na Umbanda como Orixá, desde sempre esteve presente nas representações de “Entidades” que se apresentam com esse nome na chamada “linha de esquerda", na qual Exus e sua contraparte feminina: as Pombagiras, estão presentes e atuam – ostensiva ou veladamente – em todas as Casas. E é essa presença que faz com que Santo Antônio também apareça entre as imagens e nos pontos cantados durante os trabalhos.
E é por isso que saudamos Santo Antônio na companhia de nossos Compadres e Comadres, trabalhadores incansáveis da caridade.
Salve, Santo Antônio!
Salve, todo povo trabalhador!
Saravá, todo Exu e toda Pombagira!
"É viva a Palavra quando são as obras que falam." (Santo Antônio de Lisboa)